sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Atire a primeira pedra - Celso Antunes

Fernando é um garoto extraordinário. Alegre, criativo e inteligente, é capaz de resolver problemas matemáticos com uma facilidade que surpreende seus professores e às vezes até irrita os colegas. Tímido, não possui muitos amigos, mas é querido e admirado pelas amizades que conquistou e que sabe com serenidade preservar. No entanto, Fernando possui dificuldades enormes na escrita, decodifica com muito sacrifício os textos, suas redações quase sempre representam verdadeiros “desastres” e ele troca letras e confunde palavras, sendo incapaz de organizar rimas ou criar metáforas verbais. Fernando possui dislexia e, portanto, é portador de um distúrbio de aprendizagem.
Henrique é também um bom garoto. Excelente jogador de futebol, nada como um peixe, e ninguém o supera em conhecimentos sobre temas esportivos. É também muito bom em História, Literatura e Geografia, mostrando em suas provas que não apenas sabe o que o professor ensina, mas vai muito além, exercitando a capacidade de deduzir, sintetizar e, sobretudo, de refletir. Ninguém duvida de sua qualidade exponencial em Filosofia e de sua capacidade de se relacionar com os outros e até mesmo de compreender e ajudar as pessoas. Henrique, entretanto, é péssimo em Matemática — não consegue compreender proporções e equações que alunos mais novos dominam com suficiência. Acontece que Henrique possui déficit de memória adquirida e, portador desse distúrbio de aprendizagem, nunca chegará a ser um físico, matemático ou engenheiro.
Ana Helena é muito querida na escola e constitui personagem obrigatória em todas as festas e gincanas organizadas por seus colegas. Extremamente criativa, é capaz de propor brincadeiras formidáveis, peças teatrais excelentes e histórias que encantam pela interação entre o raciocínio lógico e o romantismo, entre a poesia e o cotidiano das ruas. Entretanto, não consegue manter suas relações afetivas, troca de amigos com exaltada paixão, é sempre muito impulsiva, raramente termina a frase que começa e esquece com facilidade de concluir a prova da matéria que tão bem conhece. Ana Helena possui transtorno de atenção com déficit de hiperatividade e, tal como Henrique e Fernando, é vítima de distúrbio de aprendizagem.
Eu tenho 66 anos e sou professor. Não consegui aprender a nadar mesmo tendo me esforçado bastante, sou verdadeira calamidade na cozinha, e minhas habilidades culinárias jamais foram além de um ovo frito. Não sei dançar, e minha mulher vive reclamando de que sou péssimo motorista. Não sou lá muito diferente de Fernando, Henrique ou Ana Helena e, pensando bem, minhas deficiências são bem maiores e mais comprometedoras para viver a vida que se leva. Ocorre, porém, que elas são socialmente aceitas e, por isso, não recebi qualquer rótulo e não sou portador de distúrbio de aprendizagem. Sou apenas um velho incompetente para habilidades muito mais essenciais que a redação, o domínio matemático ou a impulsividade, mas beneficiado por uma crença que me separa com honraria de outros melhores que eu: vejo-os escorraçados por algumas dificuldades aqui e ali, em nada comprometedoras para viver.
Creio que você é melhor que eu na cozinha, na piscina, nas festas ou no volante, mas por certo deve ter lá também suas incompetências. É bom que assim seja, porque isso nos faz diferentes, e sei que preciso de você em algumas coisas, mas posso lhe oferecer outras. Esse é o encanto e o segredo da diversidade que necessita com urgência chamar para esse quadro todos que são aqui e ali rotulados como deficientes.
Se por acaso alguém é perfeitamente bom em tudo, que jogue no cesto de lixo esse papel e atire a primeira pedra…

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