domingo, 25 de setembro de 2011

Fim do mundo - Rubem Alves

 

Há duas maneiras de entender as coisas: poeticamente e cientificamente. Para se entender esses dois jeitos de falar e de pensar, há de se entender dois jeitos de ver e de olhar. Ângelus Silésius descreveu esses dois jeitos, poeticamente:


“Temos dois olhos. Com um, vemos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro, vemos as coisas da alma, eternas, que permanecem”.

Explico. No consultório do oftalmologista, estava uma gravura com o corte anatômico do olho. Científica. Verdadeira. Naquela noite, o mesmo oftalmologista que tudo sabia sobre os olhos foi se encontrar com sua bem-amada. Olhando apaixonado os seus olhos e esquecido da gravura e de sua verdade científica pendurada na parede do seu consultório, ele lhe disse: “Teus olhos, mar profundo…”. No consultório ele jamais falaria assim. Olho não é mar. Falaria como cientista. Mas os olhos da sua amada o transformaram em poeta. Cientista, ele fala o que vê com o primeiro olho. Apaixonado, ele fala o que vê com o segundo olho. Cada olho vê a sua verdade…

Há também dois jeitos de se pensar sobre o início do mundo. O primeiro olho, olho com que os astrônomos veem, vê o big-bang, bilhões de galáxias, velocidades inimagináveis, estrelas que nascem, estrelas que morrem. O segundo olho, olho com que os poetas e os amantes veem, vê um Paraíso, cores, perfumes, frutos…

E há dois jeitos de pensar o fim do mundo: o científico e o poético…


Que eu saiba, o primeiro homem que, vendo e pensando com o primeiro olho, percebeu que a Terra estava sofrendo de uma doença mortal foi Robert Malthus (1766–1834). A doença que ele detectou era mortal como o câncer.

Câncer é o nome que se dá a um cacho de mais de cem doenças que se caracterizam pelo crescimento desordenado das células. Doente com câncer morre quietinho, sem fazer barulho. Era assim que a Terra morreria, sem terremotos, tsunamis e choques com meteoros. No fim do mundo visualizado por Malthus, o mortal crescimento desordenado estava no fato de que os alimentos cresciam devagar, em progressão aritmética, um repolho se somando a outro, 1+1+1, enquanto que as barrigas famintas que queriam comer repolhos cresciam por multiplicação, 1, 2, 4, 8, 16… Nesse crescimento desordenado estava o câncer que acabaria por matar o doente. Estava aqui, em germe, a teoria que seria enunciada por cientistas do Clube de Roma 170 anos depois com o nome de “os limites do crescimento”.


Resumindo a teoria em duas frases curtas: (1) O funcionamento da nossa civilização acontece segundo o “crescimento constante”. (2) O “crescimento constante”, se parece saudável e bonito num primeiro momento, é mortal, com o passar do tempo. Igual à bolha de sabão: perfeita e linda, dentro de limites precisos. Ultrapassado esse limite, ela explode. Nossa civilização vai explodir.



Jonathan Swift (1667–1745) não era cientista por formação. Era um escritor dotado de uma inteligência aguda e cortante. Suas teorias, ele as apresentava sob a forma literária de “viagens”. Naqueles tempos longínquos, descrever viagens era a forma de se fazer crítica social. As coisas ruins sempre aconteciam em países distantes. No “nosso” país só aconteciam coisas boas… Se algum escritor se atrevesse a descrever as coisas ruins que aconteciam no seu país, sua cabeça logo seria cortada pelo rei ou pela rainha. Uma de suas viagens mais populares — que pessoalmente não considero a mais interessante — está no livro As viagens de Guliver. Muitas crianças e adolescentes o leram. Ele escrevia sempre com um espírito de gozação, sátira.



Sua viagem ao país das universidades chamado Lagado é muito divertida. Porque as universidades de Lagado, há mais de 300 anos, se parecem muito com as universidades de hoje.



Ora, havia um problema demográfico real que assolava a Irlanda com todas as características de um tumor canceroso: os pobres procriavam com muita rapidez e passavam fome porque a comida não era suficiente para encher a barriga de tanta gente… Eis aí, de forma literária, aquilo que Malthus percebeu de forma científica… Jonathan Swift, então, escreveu um livrinho a que deu o título de A modest proposal: for preventing the children of poor people in Ireland from being a burden to their parents or country, and for making them beneficial to the public (Uma proposta modesta para impedir que as crianças dos pobres sejam uma carga para os seus pais tornando-as um benefício para o público… ) Esse livro não é para ser levado a sério; é uma sátira, uma gozação, em que o autor apresentava a sua solução para o tumor canceroso: solução cirúrgica. Bastava que os pobres comessem os seus filhos.



Isso resolveria o problema da fome dos pais e o problema demográfico do crescimento populacional… Um cineasta com espírito de humor poderia transformar o livrinho A modest proposal num filme.



Um absurdo? É preciso lembrar que, em situações extremas, os seres humanos têm se valido de soluções antropofágicas para sobreviver: é melhor que um seja morto para se transformar em comida para os outros que todos morrerem. Numa situação limite como essa, não se invoca o mandamento “Não matarás”…



A proposta modesta não era uma proposta. Era uma piada. Nenhum governo iria propor que os pobres comessem os seus filhos para resolver o problema da fome e do crescimento populacional. Mas o ponto cortante da proposta modesta é cientificamente certo: se a população continuar a crescer indefinidamente, chegará um momento em que, para sobreviver, os mais fortes devorarão os mais fracos. Poder-se-ia então dizer que a população condenada a morrer por falta de alimentos era como se estivesse sendo devorada por aqueles que comem a comida que há

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