domingo, 25 de setembro de 2011

Escola e democracia - Luca Rischbieter

A escola é uma das instituições que, historicamente, está associada a processos de democratização em todo o planeta. Países que se democratizam são países que aumentam o acesso à educação — em todos os níveis — para todas as camadas da população.
Mas, na verdade, as escolas podem e devem ter um papel muito mais ativo na formação para a democracia. Isso precisa acontecer no mundo inteiro, especialmente em países como o Brasil, que tem uma história marcada por injustiças e barbaridades como a escravidão e por governos autoritários que se julgam no direito até mesmo de prender e assassinar pessoas que pensam as coisas de forma diferente da sua.
É normal que nos esqueçamos, em períodos mais democráticos, de que o nosso País foi o último do planeta a abolir a escravidão e que vivemos longos e tenebrosos períodos de ditadura, o que aliás ajuda a explicar a excessiva passividade da imensa maioria de nós, quando se trata de exercer a cidadania e o direito de protestar contra a falta de ética de políticos e de governantes. Nossa democracia é jovem e precisa ser aprimorada, se quisermos que cresça e se torne cada vez mais robusta e “entranhada” na mentalidade de nossos compatriotas de todas as idades.
Por isso é que, nessa discussão, eu acho que a primeira grande pergunta que a escola deve se fazer é:
Somos ou não somos a favor da democracia?
Em 2010, sabemos que os governos de muitos países responderiam “não” a essa pergunta. O Irã e a China são dois exemplos para lá de significativos disso. Felizmente, hoje, em nosso País, governos e escolas respondem com um grande e sonoro “sim, queremos ensinar para a democracia”.
O que nos leva à próxima questão:
Estamos ensinando democracia bem?
Formar para a democracia envolve bem mais do que simplesmente “dar aulas” sobre a importância da democracia, sua história, sobre o combate muitas vezes violento e trágico por ela.
Em 1933, quando o Brasil ainda não havia realizado suas primeiras eleições que tiveram uma participação razoável da população e foram consideradas limpas (o que aconteceu em 1945), Anísio Teixeira (1900-1971), um de nossos maiores educadores, publicava a primeira edição do livro Educação progressiva: uma introdução à Filosofia da Educação, com críticas à escola sobre as quais vale a pena meditar até hoje e que vão ao centro do debate que propomos.
A principal crítica de Anísio Teixeira era contra a excessiva passividade imposta aos alunos nas aulas. Isso ensinava uma série de hábitos incompatíveis com a formação para a democracia. Veja o que ele dizia sobre os efeitos negativos de uma escola que “dá aulas” o tempo todo, utilizando o exemplo das aulas de Matemática:
Ora, a escola tradicional nunca percebeu que, em uma lição de aritmética, podia estar ensinando as crianças a não terem coragem, a não serem sociais, a alimentarem complexos de inferioridade, etc., de que iriam sofrer por toda a vida.
Então vemos que a velha escola, onde as crianças iam para fazer aquilo que não queriam, com uma disciplina semimilitar, está profundamente inadequada não só para a sociedade presente, como para a própria concepção moderna da aprendizagem. ¹
A pergunta que podemos nos fazer é: será que ainda estamos na “velha escola” a que se referia Anísio Teixeira em 1933? Será que, em pleno século XXI, estamos fazendo algo mais do que “dar aulas” — quase o tempo todo, todos os anos, dias e horas — em nossas escolas?
Isso nos leva a uma nova questão:
Como ensinar democracia?
Já que dar aulas sobre democracia está longe de ser suficiente para ensiná-la, o que podemos fazer? A resposta de pedagogos como Anísio Teixeira e de psicólogos como Jean Piaget (1896-1980) a essa pergunta é de uma simplicidade espantosa:
A melhor maneira de aprender democracia é praticando democracia!
Aliás, nada mais sensato, não é mesmo? Vejamos algumas citações de Piaget:
Unicamente a vida social entre os próprios alunos, isto é, um autogoverno levado tão longe quanto possível e paralelo ao trabalho intelectual em comum, poderá levar a este duplo desenvolvimento de personalidades donas de si mesmas e de seu respeito mútuo. ²
Autogoverno? Uma escola governada por alunos e alunas? É isso mesmo que Piaget, admirador confesso de pedagogos revolucionários como Freinet e Makarenko, está dizendo:
O problema é saber o que vai preparar melhor a criança para seu futuro papel de cidadão. Será o hábito da disciplina exterior adquirido sob a influência do respeito unilateral e da coerção adulta, ou será o hábito da disciplina interior, do respeito mútuo e do autogoverno? ³
A criança, quando não está como na escola condenada à guerra contra a autoridade, é capaz de disciplina e de vida democrática. 4
Sempre me divirto relendo essas declarações de Piaget, que tantas pessoas e escolas que se pretendem “construtivistas” nem ao menos discutem.
Aliás, acho a visão de Piaget meio ingênua e muito radical. As experiências de escolas autogovernadas são fascinantes, mas raras e difíceis de reproduzir em grande escala. Mas, por outro lado, também acho que essas afirmações apontam caminhos superfáceis de implementar para escolas que buscam um dia a dia cada vez mais democrático:
Se queremos formar para a democracia, devemos aproveitar, sempre que possível, inúmeras chances que aparecem para favorecer debates, trocas de pontos de vista, elaboração coletiva de regras, etc.
O mais importante, na perspectiva de uma escola que quer formar para a democracia, é pensar em situações que possam contribuir para desenvolver a competência de interagir dialogicamente com os outros.
Isso pode acontecer tanto dentro das salas de aula — na medida em que aumentamos as atividades realizadas em duplas e em pequenos grupos, em que usamos jogos, dramatizações, debates e julgamentos simulados, discussões sobre regras de convivência, etc. — quanto fora dela — por meio do envolvimento em campanhas de caráter cívico (como a luta por uma melhor sinalização do trânsito ou o apoio a uma instituição carente próxima à escola) e do incentivo à criação de grupos de interesse extraescolares (como grêmios de estudantes e clubes de alunos interessados em astronomia, em xadrez, etc.).
Ideias como essa, incorporadas ao cotidiano de nossas escolas, ajudam a formar pessoas mais bem preparadas para a cidadania em uma democracia, ou seja, pessoas que sabem dialogar e tomar decisões em conjunto, sem recorrer ao autoritarismo.
De quebra, como veremos em nosso último item, ajudam também a formar pessoas mais inteligentes:
Educação para a democracia e desenvolvimento intelectual
Ensinar para a democracia, de forma mais dialógica e ativa, pode contribuir também para o desenvolvimento intelectual de nossos estudantes.
Em 1966, um especialista em Didática, inspirado por Piaget, afirmava essa ideia com clareza:
Podemos dizer que a criança que troca ideias com seus semelhantes e com o adulto é levada a organizar de maneira operatória seu próprio pensamento. Os contatos sociais da criança desempenham, assim, papel de primeiríssima importância em seu desenvolvimento intelectual.5
Não é preciso ser construtivista ou piagetiano para concordar com essas ideias, um pouco de reflexão e de bom senso basta. Outra piagetiana importante, Constance Kamii, também afirma que ambientes mais “democráticos”, ricos em experiências e desafios, são ideais para a inteligência infantil, e ela faz um alerta muito interessante:
Uma criança educada numa família autoritária tem muito menos oportunidades de desenvolver sua habilidade de raciocinar logicamente. 6
O mesmo vale para as escolas: quanto mais autoritário o ambiente escolar, menos chances as crianças terão de desenvolver sua própria inteligência.
Ou seja, à medida que conseguirmos diminuir, em nossas escolas, o monopólio da atividade de “dar aulas”, e que introduzirmos processos de ensino-aprendizagem e formas de interação cada vez mais dialógicas e diversificadas, estaremos contribuindo não apenas para a construção de um país mais democrático, mas também para a formação de novas gerações mais inteligentes.
Eu acho essas ideias tão sensatas que gostaria, de forma nada democrática, que todo mundo fosse obrigado a meditar sobre elas…
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¹ TEIXEIRA, Anísio. Educação Progressiva. 4.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1953. p.49.
² PIAGET, Jean. Para onde vai a educação? Rio de Janeiro: José Olympio, 1996. p. 63.
³ PIAGET, Jean. O juízo moral na criança. São Paulo: Summus, 1994. p. 270.
4 Idem, p. 270.
5 AEBLI, Hans. Didática psicológica. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1974. p.70.
6 KAMII, Constance. A criança e o número. Campinas: Papirus, 1984. Página. 47.

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